Siro Darlan: “eu conheço a fome, vivi a vida das crianças abandonadas – essa é a minha origem”

Em entrevista exclusiva para o jornal Tribuna da Imprensa Livre, o ex-juiz e desembargador, Siro Darlan, natural de Cajazeiras (PB), com coragem e desprendimento afirmou que no Brasil: “O judiciário, com raras exceções, está sempre apeado com quem está no poder. Exemplo disso foi a atuação do judiciário nas ditaduras e nos regimes de exceção.” 

Luiz Carlos Prestes Filho: Como o Senhor Desembargador interpreta a judiacilazação da vida brasileira? A justiça consegue resolver as demandas ou deveríamos buscar mais diálogo, convergência de interesses e entendimento?

Siro Darlan: O judiciário foi criado para restaurar a paz social quando surgem conflitos de interesses na sociedade e suas principais características são: a independência, imparcialidade, integridade, idoneidade, igualdade e competência e diligência. O Judiciário, um dos três pilares da democracia, é o último refúgio do cidadão contra leis injustas e decisões arbitrárias. As desigualdades sociais e o egoísmo de um sistema econômico que acumula bens e direitos em pequena parcela privilegiada da população gera conflitos que deságuam num judiciário incapaz de corresponder ás expectativas dos menos favorecidos, porque dominado pela aristocracia, não dá conta de equilibrar a balança de Themis. Por outro lado, conhecendo essas limitações o judiciário elevado á categoria de poder da Republica pelos Constituintes, reluta em compartilhar essa parcela de poder com outros segmentos e especialidades como a medicina, a quem compete regular sobre o uso de drogas; com a psicologia a quem compete dirimir os conflitos familiares e de relacionamento; com a psiquiatria a quem compete decidir sobre os excessos no comportamento humano; dentre outras disciplinas que substituiriam o direito com lucros para todos. Assim é que não prosperam programas de solução de conflitos como a Mediação, como a Justiça Terapêutica, como a Justiça Restaurativa, a Escola de Mediação para a paz social e outras modalidades de resolução de conflitos que há muito já devia estar fora do âmbito do judiciário. Evidente que o diálogo direto, a busca da convergência dos interesses e a busca do entendimento entre as pessoas em conflito são de longe muito mais eficazes do que qualquer sentença a impor comportamentos e penas.

Por outro lado, o judiciário, cujo poder não emana do povo, uma vez que os juízes não são eleitos e sim concursados, não tem exercido, por isso mesmo, o poder em nome do povo. Salvo raras exceções tem exercido contra o povo, tornando-se uma ferramenta de exclusão social e de direitos da aristocracia dominante e do poder econômico. A história demonstra que o nosso judiciário, com raras exceções está sempre apeado com quem está no poder. Exemplo disso foi a atuação do judiciário nas ditaduras e nos regimes de exceção. E recentemente no golpe de 2016, quando homologou sentenças e decisões que nitidamente eram lawfare utilizada pelo poder político com supremacia para descumprindo a vontade popular apear do poder os indesejáveis. Outro exemplo é o retrato do sistema penitenciário onde estão os indesejados da sociedade escravocrata, que substituiu a Senzala pelo Sistema Penitenciário, onde habitam os pobres e negros a quem se negou o acesso aos direitos fundamentais de todo cidadão. A própria representação do judiciário é maculada por concursos fraudulentos e de favorecimentos pessoais na toada de um nepotismo, corporativismo, advocacia administrativa e heranças de DNA, que faz com que a toga passe de pai para filha e sejam os herdeiros favorecidos nos concursos para a magistratura. Recentemente tivemos um concurso onde foram aprovados 14 filhotes (assim como chamava Brizola os filhos da ditadura) em 30 aprovados no concurso. Outro caso conhecido e divulgado foi o de duas namoradas de um mesmo magistrado aprovadas no mesmo concurso para tabeliã, flagradas com provas idênticas, inclusive nos erros de gramática. O judiciário, última cidadela de confiança, no Rio, criou uma lei chamada de fatos reais, que nitidamente burla a Lei Orgânica da Magistratura, em concluiu com os governos corruptos que levaram o Rio de Janeiro à bancarrota, cujo resultado favorece o recebimento de verbas pelos juízes, cuja impugnação encontra-se no STF no gabinete de um ministro do Rio de Janeiro há mais de cinco anos. Essa li permite, dentre outras aberrações que um magistrado receba quase 5 mil reais para financiar os estudos de cada filho. E, pasmem, houve casal de magistrado que pleiteou a mesma verba em duplicidade para um único filho comum aos dois. Felizmente houve bom senso.

Mas esses enredos ocorrem numa sociedade de pobres e pretos, que são enjaulados nas masmorras do Sistema Penitenciário, considerado em “estado de coisa inconstitucional” pela mais alta Corte da Nação, mas em nada mudou as decisões judiciais que continuam fazendo o papel de “Capitão do Mato” numa sociedade escravocrata de ódios aos menos favorecidos.

Prestes Filho: Excelência, o senhor já vivenciou excessos da justiça?

Siro Darlan: A justiça é composta por homens e mulheres com todas as características dos seres humanos, portanto, somos falíveis e erramos. Há, no entanto um sistema de revisão necessário e inteligente que muitas pessoas não compreendem e promovem uma discussão de antecipação da pena, que na prática ocorre, mas apenas com as pessoas pobres e que não têm acesso a uma boa defesa para fazer cumprir as leis que determinam que a prisão deve ser o último remédio contra a violência. Enquanto houver dúvidas e não tiver transitado em julgado uma decisão, prevalece a presunção de inocência. Como juiz de primeiro grau tive muitas sentenças minhas modificadas no segundo grau de julgamento. Já como juiz de segundo grau tenho procurado me pautar pelas regras da Constituição e das leis, cujo juramento para respeitar e fazer respeitar fiz por ocasião de minha posse na magistratura. Como disse na corporação judiciária há muitos interesses em jogo. E no corpo de magistrados, alguns representam esses interesses. Por exemplo, o instituto do quinto constitucional, quando advogados e promotores de justiça ingressam na magistratura sem fazer concurso, mas representando interesses políticos que influenciarão nos seus julgamentos. Há o caso de uma advogada cujo ingresso foi patrocinada pela empresa que domina a mídia no Rio de Janeiro, porque era chefe do departamento jurídico daquela empresa. Outra foi empossada porque era casada com um dono de jornal. Outra afirmou que “ganhara” a toga após uma “caliente noite de amor”. Esses fatos fazem com que ingressem na magistratura verdadeiras bancadas, como ocorre nas Casas Legislativas e tiram a pureza de imparcialidade dos julgamentos.

Nos últimos tempos tem havido uma verdadeira caça às bruxas por parte de representações de repressão aos magistrados independentes, que não se submetem às essas pressões internas ou externas. Vários são os que estão respondendo processos administrativos e mesmo ações penais por seu caráter garantista (aqueles que cumprem as leis e garantem direitos) e independente. Muitos estão sendo processados por iniciativa do ministério público por não concordarem com suas decisões judiciais, como é o caso de um juiz paulista que responde processo por ter sido acusado de ser muito liberal na condução de seu processos; outro no Amazonas teve sua casa invadida e sua privacidade devastada e ser chamado de “amigos de bandidos”, em razão de suas decisões judiciais. A constituição assegura aos juízes direitos especiais para o exercício da função judicante. São elas a inamovibilidade, para impedir que juízes que estão contrariando com suas decisões o poder não seja por ele transferidos; irredutibilidade dos vencimentos, para que não sofram sanções com redução de vencimento por estar incomodando o poder; e a vitaliciedade. Essas garantias visam dar sustentação para que os juízes tenham total independência em seus julgamentos, tais garantias, na verdade são garantias do povo que se submeterá a essa justiça. Portanto, não se admite, sob o prisma constitucional, que nenhum magistrado venha a ser perseguido, processado em razão de sua motivada decisão judicial. Para tanto, cabem os recursos legalmente previstos nas leis.

Quando magistrados têm suas decisões judiciais “criminalizadas” é um sinal grave de distorção na democracia e, certamente, de um regime de exceção.

Prestes Filho: A experiência vivida como juiz da infância e da juventude proporcionou uma aproximação com o sofrimento das classes excluídas socialmente?

Siro Darlan: Como canta Belchior, “eu sou apenas um rapaz latino americano, sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes, e vindo do interior”. Então como dizem os meninos de rua que conheço tão bem: “Eu conheço a fome, eu conheço o frio, assim são os meninos abandonados do Rio”. Eu vivi um ano no Colégio interno do SAM, depois FUNABEM, depois CBIA, com meu irmão mais novo Tim Gray, e vivi a vida desses jovens e crianças abandonadas. Essa é a minha origem. Quando passei na magistratura realizei o meu sonho e fui durante 15 anos escrevendo minha história de respeito e efetivação dos direitos das crianças e adolescentes. Fui o primeiro a frequentar o ambiente em que são recolhidos e realizei nos educandários todas as audiências, com eles e seus familiares. Sai com minha equipe do ambiente confortável de meu gabinete e fui ao encontro deles. Conheci e vivenciei a realidade deles realizando o programa “Justiça nas Comunidades” em diversas favelas do Rio de Janeiro. Realizei no CLUB MED uma conferência com 40 meninos e meninas de rua que durou 3 dias, com propostas que foram publicadas nos termos ditados por elas e eles.

Portanto me identifico inteiramente com esses jovens brasileiros abandonados pelo poder público, por falta de investimento na política de promoção do trabalho, da educação, da saúde e da habitação. Era o juiz por ocasião da Chacina da Candelária e sofri muito com essa crueldade. Sou juiz para servi-los e isso incomoda muita gente.

Prestes Filho: Seria possível destacar momentos emocionantes e humanos durante Vossa trajetória como juiz?

Siro Darlan: Sofri muito quando fui juiz de família porque testemunhei o que o egoísmo humano é capaz de fazer quando o amor acaba. A briga por ninharia com a finalidade só de se agredirem mutuamente, mas principalmente a covardia de fazer uso dos próprios filhos para essas agressões. Mas minha realização maior e onde eu queria ter permanecido vitaliciamente foi a Justiça da Infância, da Juventude e do Idoso. Ali consegui reunir a mais importante equipe de servidores comprometidos com a causa das crianças. Não olhavam para o contracheque, para os horários puxados, nem para as dificuldades que lhes eram impostas. Não havia uma única exceção, dos vigias aos psicólogos, assistentes sociais, médicos, técnicos de secretaria, todos vestiram a camisa e foi possível fazer o melhor que pudemos. E fomos reconhecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) como exemplo de serviço de justiça para o Brasil no relatório desta importante instituição. Mas essa honraria não foi o mais importante. Essencial foi que transformamos a Praça Onze na casa do povo, onde crianças e familiares entravam e saiam com as respostas possíveis. Criamos muitos projetos de promoção das famílias pobres e das crianças para integra-las sem institucionalizá-las. Os processos de adoção e guarda bobavam e sua duração era menor do que uma gravidez biológica. Há inúmeros exemplos para desmentir se não for verdade.

A possibilidade de mudar vidas é muito emocionante e realizador. Tenho saudades!

Prestes Filho: Pessoalmente o Senhor Desembargador já viveu injustiças na justiça?

Siro Darlan: Quem não vive injustiças numa sociedade com tantas desigualdades sociais e econômicas? Acho que elas servem para confirmar que estamos no caminho certo. Não sou desse meio que privilegia o nepotismo e favorece amigos e coniventes. Nunca me submeti à vergonhosa fila de “lava mãos e beija pés” que os magistrados são obrigados a se submeter quando desejam alguma promoção. Dizem eles é a regra. Eu digo, não a minha. Por isso, nunca fui promovido por merecimento, talvez não o tenha. Por ser um juiz independente sofri 52 representações administrativas e fui punido uma vez com censura e duas advertências. Sofri dois processos de remoção compulsória que foram rejeitados pelo Órgão Especial. Será que sou tão mau juiz assim? Ou apenas diferente? Ser diferente é um ato muito grave no judiciário, Você deve ser submisso se deseja sobreviver. Mas, e como fica nossa independência para julgar e fazer justiça? Como juiz do segundo grau já respondi a mais de cinco representações no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e agora uma ação penal no Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Ora do que me queixar, se Mandela esteve preso 27 anos, Mujica, 11 anos, Lula, quase dois anos; Luiz Carlos Prestes nove anos e quase a metade de sua vida pública na clandestinidade! Não tive essa honra ainda. Talvez não tenha feito o suficiente para merecer tão nobre comparação.

Mas tenho fé que só a rebeldia é capaz de mudar o mundo e sigo na esperança que é possível fazer JUSTIÇA nesse país.

Prestes Filho: Imaginou que a justiça poderia se voltar contra Vossa honra e conduta?

Siro Darlan: Não, nessa altura da vida, com 40 anos de magistratura e conhecendo exemplos de dignidade da mais alta relevância no judiciário e fora dele, como o do Professo Sobral Pinto, exemplo de magnanimidade que como cristão convicto soube colocar a advocacia no mais alto grau defendendo a causa daqueles que com ele não comungam. Foi exemplo em toda sua vida de coerência com sua fé e sua profissão. Ao advogar para Prestes dignificou a advocacia brasileira. Sempre procurei pautar a minha vida pela dignidade e honestidade. Jamais cometeria fato tão horrendo de vender algo que não me pertence. Uma sentença é prolatada por mandato popular, portanto pertence ao povo de onde o poder emana. Essa indignidade que hoje me atribuem, eu, que sou contra a pena de morte, faço uma exceção, para condenar à morte o juiz que trai seu compromisso de imparcialidade e honestidade. E é justamente no coração que me atiraram a flecha da indignidade. Não vivi 72 anos de minha vida para atingir o patamar de respeitabilidade para me jogar desse abismo das trevas. Tenho seis netos que me amam e que eu amo, e jamais os decepcionaria, nem aos meus filhos e muito menos à minha esposa que tem sido minha sustentação nessa prova de Jó.

Arrancaram-me todos os meus bens bloqueados, invadiram minha casa quatro vezes e nada acharam porque nada tem, teve ou teria. Mas sigo confiante que assim como Deus nos dá uma prova tão terrível, Ele nos dará a vitória da verdade e da dignidade.

Prestes Filho: Como cristão e estudioso da ciência filosófica o Senhor Desembargador entende que a situação vivida neste momento é consequência Vossa firme atuação em defesa dos mais humildes e da democracia no Brasil?

Siro Darlan: O sistema capitalista vigente não tolera a ascensão de uma pessoa de classe que eles chamam de inferior. O exemplo de um presidente operário que foi escolhido pelo povo para liderar e governar o Brasil, distribuiu bens, educação, direitos e foi levado ao cárcere é o maior exemplo do preço que se paga por olhar pelos pobres. Dom Helder Câmara não era um bispo bem visto na hierarquia da Igreja, mas será que o que ele fazia de errado? Ele cumpria o Evangelho. O Papa Francisco está condenado à morte e sofre constantemente bullying não apenas dentro, mas também fora da Igreja que ele comanda com o Evangelho na mão. Entendo que temos mesmo que passar por esses percalços porque a Via Crucis de Jesus não foi diferente. Ele foi escolhido para morrer em lugar de Barrabás. Ele nos alertou que o caminho seria difícil, mas fiz essa opção preferencial pelos pobres.

Por outro lado, devo contribuir como cidadão para o aprimoramento da democracia, que só vira quando for reduzido esse abismo social, e o mesmo acontecerá com a paz social, e, como decorrência, a redução dos trabalhos do judiciário.

LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Diretor Executivo do jornal Tribuna da Imprensa Livre; Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); É autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).

TRIBUNA DA IMPRENSA LIVRE

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