Causos de papai

Meu pai era uma figura espirituosa. De uma inteligência privilegiada tinha um sincero orgulho de dizer que estudou apenas quatro meses, em períodos intercalados. Esses períodos, entretanto, foram suficientes para lhe assegurar a condição de ensinar um dos seus professores a dividir por mais de um dígito e fazer contas de tarefa. Mais tarde, na fase adulta, os parcos intervalos de estudo o credenciaram a ser professor. Na minha memória de infância ainda tenho a lembrança dos restos da lâmpada de carbureto esquecidos em um dos armazéns de nossa casa em Impueiras e que, em alguns momentos, servia como peça decorativa nas brincadeiras de boneca. Essa lâmpada era utilizada para iluminar o salão improvisado em sala de aula, considerando que as atividades escolares eram noturnas por serem todos os alunos adolescentes e adultos que já trabalhavam na lida agrícola.

A espirituosidade de papai me traz a lembrança de uma cena de minha infância quando, em um sábado de feira livre, em Cajazeiras, ele conversava com um esmoler tentando se inteirar de sua desditosa sorte antes de cumprir seu dever cristão de dar a esmola. O mendigo lhe afirma que tinha se tornado inválido em função de um tiro que levara e que lhe afetara os movimentos vitais dos membros inferiores, o incapacitando para o trabalho. Meu pai, num lampejo de criatividade, vaticina: mas soltou o bode?

Em outro momento, ele, finalmente, consegue cavar um cacimbão no baixio de Impueiras, satisfazendo as permanentes reclamações de mamãe que, sobretudo, nos períodos de inverno, reclamava com as cacimbas enxurradas. Meu primo Valdomiro, por nós carinhosamente tratado por Biru, e que, por algum tempo, foi padre, chegou e vendo que o cacimbão estava muito próximo ao leito do riacho, indaga: mas Tio Raimundo, e se der uma cheia grande, a água vai encobrir o cacimbão e contaminar a água? Meu pai, de pronto, responde: Nesse caso, eu venho e emborco o cacimbão.

Papai também contava a história do pequeno cigano que, num acampamento, monta em um cavalo equipado com uma cangalha e que o animal desembesta em debelada carreira deixando a todos aflitos. A mãe cigana, aos prantos, berra para o filho: filho, se apegue com Nossa Senhora. Em um canto do acampamento, no alto da experiência acumulada pelos anos de vida, uma velha cigana vaticina: menino, não confie só nela não, segure também no cabeçote.

Com seu jeito inteligente e alegre, meu pai cultivava a todos com uma sincera simplicidade e uma capacidade incrível de ser gentil e amigo sem pretensão ou presunção. Brincalhão, adorava dar risadas e fazer troças de coisas simples da vida e das pessoas. Anotava os detalhes e as peculiaridades dos comportamentos e procederes apenas para tirar o lado engraçado e divertido das pessoas e construir episódios hilários que narrava com propriedade. Assim, viveu, com um profundo sentimento de religiosidade e fé que o fez amigo e fraterno. Mesmo não estando fisicamente entre nós desde 16 de maio de 2005, suas histórias e risadas continuam como uma alegre lembrança.

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