Enxergar muito melhor

Meia dúzia de pacientes aguarda sua vez de entrar no centro cirúrgico para fazer cirurgia de catarata, ou seja, substituir o cristalino natural, velho e opaco, por um artificial, novo em folha. A tensão normal que precede a qualquer cirurgia estava ali na antessala diluída na conversa entre doentes e familiares. Ninguém se conhecia até o acaso juntar-nos na mesma ansiedade. Todos acima de sessenta anos. Cada um com sua história, a desfiar outras doenças, como se quisesse ostentar experiência dolorosa a lhe dar autoridade ou respaldar a aparente tranquilidade. Aparente, é claro, porque no fundo, todos nós estávamos tensionados. De um canto da sala, uma acompanhante enfatizava a idade de sua mãe, 99 anos. Em 2016 vai comemorar o centenário, disse e acrescentou, está lúcida, faz conta de cabeça, come de tudo, até banana antes de dormir… A vaidade da filha foi interrompida pela voz frágil e meio rouca:

– Abaixo de Deus tem doutor Sabino.

Era a própria. Antes, ela pensava que nenhum médico iria querer dar-lhe de novo a luminosidade tragada pela turva película protetora que a natureza pôs nos olhos da gente. O cristalino ficara embaçado com os passar dos seus muitos anos. Tinha medo de não encontrar um médico que a operasse na sua avançada idade. Por isso, expressava a gratidão prévia ao médico cajazeirense. Sinal de reconhecimento a quem lhe ia devolver o prazer de enxergar sem as sombras impostas pelo tempo a sua visão quase secular. Daí, a lembrança de Deus associada ao oftalmologista. Faz sentido.

A conversa prosseguia animada, àquela altura já não havia distinção entre pacientes e familiares, todos a papear em descontraída animação. A diferença, porém, era visível nos trajes. Devidamente preparados, os enxerga pouco, vestíamos bata aberta atrás, touca, sapatilha de pano etc. Um senhor que chegara na companhia de três gerações, incluindo um filho padre, era de todos nós, talvez, o mais carente da operação. Digo isso porque o vira chegar ao hospital com seus próprios pés, mas tateando com as mãos portas e cadeiras na recepção do hospital. Ele mesmo confirmou isso, depois, em conversa paralela com minha esposa, ao perguntar-lhe, olhando para mim.

– Ela é sua mãe?

– Não, amigo, você está precisando operar a vista…

Eu disse em cima da bucha, provocando uma risada geral… Risada prolongada ao ponto de a mulher dele chorar de tanto rir… Ele se desmanchou em desculpas, rosto vermelho, sem jeito, sem saber onde botar as mãos. Que nada, disse eu, bobagem, daqui a pouco você vai conseguir distinguir um homem de uma mulher, mesmo que ele esteja vestido com esta camisola… Mais velho do que eu, José Firmino foi delegado de polícia em vários municípios da Paraíba: Alagoa Nova, Pocinhos, Cuité, Puxinanã. Já passara por outros centros cirúrgicos ao longo de sua longa vida e agora agradecia a Sabino Filho o diagnóstico correto e a indicação de um especialista capaz de cuidar de outros males que tornavam mais precária sua visão.

Dia seguinte, nos encontramos todos na primeira revisão pós-cirurgia. Uma festa. Abraços, votos de feliz recuperação, fotos para a posteridade. Nada comparável à véspera, em clima de ansiedade, aquela tensão normal que antecede a qualquer intervenção estranha em nosso organismo.

P S – Sabino Filho ajuda a ver bem melhor. Difícil é Cajazeiras enxergar seu futuro sem sombras, sem miudezas inconsequentes de políticos espertos e corruptos.

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