A voz e o dono da voz

O silêncio foi a única sintonia possível no dial do rádio. A sua voz trazia o timbre e a saudade das aulas do mestre Otinaldo Lourenço, na Disciplina de Rádio Jornalismo, do Curso de Comunicação Social, da UFPB. Ele não apenas lia, mas interpretava a notícia, lhe dando vida e dinâmica ao vislumbrar a linha seguinte e traduzir palavras, sentidos e complemento do todo.

Egressa do Curso de Comunicação Social, com mil e tantas ideias na cabeça e quase estéril em formação prática, vou trabalhar na Rádio Alto Piranhas, realizando reportagens de rua, mas, sobretudo, fixada na redação e dedicada a preparação de noticiários, alimentados pelas gravações do rádio escuta e dos repórteres de ruas.

É na redação da Rádio Alto Piranhas que ensaio os primeiros movimentos na escrita de crônicas. E elas ganham vida e pujança em sua voz que, peculiar, traz movimento, cores, cheiros, vozes a letras, palavras, linhas, folhas datilografadas. E, com frequência, me chegavam relatos de ouvintes expressando o encantamento com as minhas crônicas e como elas incorporavam personalidade e identidade em sua voz, ao anunciar: “escreveu Mariana Moreira”.

Assumindo a docência na universidade, largo o jornalismo, sobretudo, a militância profissional em rádio. Mas mantenho sempre a sintonia com sua voz e o prazer de sua amizade. Em nossos encontros, não tão frequentes como exigiam meu desejo de amiga, eram sempre marcados por manifestações de carinho, afeto e o tratamento afetuoso de “camarada”.

Além de trabalhar na produção e apresentação de programas jornalísticos ele destaca-se, sobretudo, na apresentação de programas gerais, através do atendimento dos ouvintes e suas solicitações de “páginas musicais”. Nos horários finais da noite e nas manhãs de domingo, na Difusora Rádio Cajazeiras, a sua voz identificava o prefixo da emissora e trazia para nossos ouvidos as lembranças de acordes e vozes que marcaram nossa história musical, sobretudo, Nelson Gonçalves e Altemar Dutra.

Mas o coração da voz foi mais frágil que a vontade do dono da voz e para de pulsar. E, como canta o poeta, “Até quem sabe a voz do dono/ Gostava do dono da voz/ Casal igual a nós, de entrega e de abandono/ De guerra e paz, contras e prós” (Chico Buarque). Ficaram lembranças e afetos da voz do dono e do dono da voz.

E também, para mim, fica uma triste certeza: as manhãs de domingo estão mais soturnas. Não mais me delicio com os pedidos musicais costumeiros que ele sempre atendia com efusiva alegria. E quem vai anunciar para mim: “agora, para atender a camarada Mariana Moreira, vamos ouvir Viagem, com Nelson Gonçalves, e Que Será, com Altemar Dutra”?

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