Pérolas ao sol

E os derradeiros vestígios da chuva da noite cintilam nos fios e pontas de folhas como reluzentes pérolas incendiadas pelo claro sol da manhã que entra em minha janela anunciando o dia. E um longínquo e solitário canto de galo destoa da cidade, com saudades de um poleiro e um monturo para ciscar basculho e catar minhocas.

Olho a rua que teima em manter-se viva e pulsante. Carros, motos e gentes seguem na direção do movimento, negligenciados dos perigos que, sorrateiros, assuntam o mundo na forma de uma pandemia.

Um desgarrado bem-te-vi estica as asas na parábola de uma antena. Estufando o peito e encarando o sol solta o cantar melodioso enquanto serelepes saguis fazem malabarismos mil na fiação elétrica.

E a rua ganha mais movimentos. Um senhor com idade de vovô protege-se da intensidade incandescente do brilho do sol com a mão em concha acima dos olhos. Na outra mão a sacola de pão quentinho, pego na padaria que madruga a manhã, anuncia o cheiro do café que se espraia pela casa.

E uma lembrança de primeiras manhãs de infância me assalta. O cheiro do café misturado a fumaça da maravalha úmida e preguiçosa que, lerdamente, sopra labaredas no fogão a lenha, habilidosamente atiçado pelas mãos paternas no início das tarefas do dia, antecipando a retirada do leite e o árduo trabalho na roça e no cuidado com o minguado rebanho.

Volto meu olhar para o presente. A rua continua se agitando. Um gari assobia uma melodia desconhecida enquanto a vassoura tenta dar um ar de limpeza as nossas irresponsáveis atitudes de considerar a rua lugar de ninguém e, portanto, depósito de nossos entulhos e dejetos. Arrastando sua carrocinha sonha com uma fumegante xícara de café e um pão com margarina para saciar a barriga desperta ainda na madrugada para cumprir a exaustiva jornada, para muitos, invisível.

Vozes humanas despertam meu olhar para um grupo de pessoas que, em uma calçada, compõe uma animada prosa. A distância me permite ouvir murmúrios indecifráveis, mas, com certeza, em algum momento, a conversa teve como mote a morte de um amigo, conhecido, parente, alimentando as dramáticas estatísticas da pandemia que, avassaladora, em nosso país ganha a aliança parceira de um presidente irresponsável e genocida.

E da minha janela de mundo olho a vida que teima em pulsar lá fora.

E me invade o medo de que a pandemia nos roube não somente vidas, mas lembranças e possibilidades de se encantar com a gota de água de chuva que resplandece no fio elétrico, tangida pelo sol que insiste em nos lembrar que ainda pulsamos.

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